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100 quilômetros urbanos

Naquela manhã, rodei algo em torno de 100 km pedalando no meio do trânsito da cidade de São Paulo. O corpo e a roupa ficaram com um cheiro insuportável de poluição. Nem quero imaginar como estarão os pulmões. Cada vez gosto menos de pedalar no trânsito, mas fazer o que? O trânsito está cada hora pior, ônibus e carros estão parando ou parados. O meio ambiente na cidade que deveria ser de todos e da vida está nojento, sujo, barulhento, triste, angustiante.
Lembro-me bem a primeira vez que tudo parou e não havia espaço para pedalar nas ruas e avenidas, ou mesmo nas calçadas. Fiquei bestificado e acabei tomando consciência que aquela esquizofrenia seria nosso futuro. Isto há uns 15 anos. O futuro chegou, é hoje, agora e aqui, na cidade de São Paulo, referência de progresso para o Brasil. Ridículo!
É óbvio que existe certo prazer em ter pedalado 100 km urbanos e ter chegado em casa inteiro, mas não se pode negar que há algo muito errado nesta história. E há, e como há! É completamente insensato que a bicicleta seja mais eficiente que os outros modais de transporte em distância tão longa. A tradução desta história é que a cidade está morrendo. Ou talvez já tenha morrido e não tenhamos percebido. Triste.
São Paulo entrou em colapso muito mais cedo do que todos imaginavam. Aliás, não consigo entender como alguém pode acreditar que essa política de transportes, voltada para veículos particulares, chegaria a bom termo em algum momento. Toda a população acreditou nessa ladainha. É ridículo persistir no mesmo erro por décadas. Onde está nosso senso crítico?
A situação só tende a piorar porque agora se pode comprar carro em 90 prestações. Que maravilha, todo mundo terá um carro! Pelo que afirmam as estatísticas, o índice de uso de transporte coletivo paulistano cai a cada dia. Para quem não consegue pagar as ridículas prestações do carro, há a possibilidade de prestações menores ainda para adquirir uma motocicleta. Não interessa se as motos poluem 7 vezes mais que os carros, pelo menos você consegue fugir do trânsito. Nem sempre. Algumas vezes vou mais rápido de bicicleta. Há ocasiões em que nem para motos sobra espaço.
O novo orgulho paulistano é a monstruosa ponte esteada na cabeceira do córrego Águas Espraiadas que descarregará boa parte do trânsito da Marginal Pinheiros, numa avenida de fundo de vale, ladeada por um dos melhores bairros da cidade. Vai adiantar algo? Muitos acreditam que sim, da mesma forma que acreditaram nos dois túneis sob a avenida Faria Lima. Provavelmente a faraônica obra irá saturar todo sistema viário, da mesma forma que qualquer espaço novo que é aberto para automóveis. E com isto irá descaracterizar toda uma região nobre da cidade. Pequeno detalhe: é mais uma ponte que não se presta para pedestres e ciclistas.
Hoje o Secretário de Transportes foi à televisão e afirmou que vão ser retiradas lombadas e se eliminar valetas para aumentar a fluidez do trânsito. Ops! Desculpe, mas não entendi. Não se fala mais coisa com coisa. Não há o que dizer, não há política, só factóides.
O espantoso desta história é que a discussão em todos os níveis, do político ao técnico, do letrado ao iletrado, do administrador público à população, não sai da mesma ladainha. Uns cantam a salvação pelo milagre do metrô, outros pelo transporte coletivo de qualidade, e há nossa tropa que acredita no fundo do coração que ciclovias podem salvar o mundo. Fico feliz que ainda haja quem acredite em Papai Noel.
Uma cidade tem que ser sadia. Na área de transportes, para funcionar minimamente bem, é necessário que as pessoas tenham condições de realizar seus deslocamentos com qualidade, segurança e conforto. Portanto é necessário um sistema de transporte que atenda a gregos e troianos, europeus e sergipanos, paulistas e paulistanos. Mas, como diz o caipira: "pássaro sozinho não faz revoada." O que deve haver é um conjunto de ações integradas, bem coordenadas e geridas, ou seja um verdadeiro sistema de transporte.
Quando se fala no metrô como solução, não se abre a boca sobre os custos, o tempo de construção, as dificuldades técnicas, crescimento urbano e populacional, cargas futuras, impactos positivos e negativos, etc. Simplesmente se afirma que o metrô é a solução. Ponto. Não se fala do sistema alimentador para que o metrô não trafegue vazio. Ou alguém imagina que todos os usuários serão vizinhos de porta das futuras estações?
Integração! Qualquer modo de transporte depende de outros transportes para funcionar bem ou do contrário irá ficar vazio. Bom exemplo: o trem que corre paralelo ao rio Pinheiros, e que ficou décadas às moscas por estar completamente isolado. Hoje é uma linha importante, mas ainda não está completamente integrado ao sistema.
Metrô, trem, ônibus, carro, moto, bicicleta, pedestre e, o que mais houver, tem que trabalhar em conjunto para que o sistema de transporte funcione a contento. Cada modal deve ter suas qualidades exploradas da melhor maneira possível para juntos oferecer eficiência à população.
Todos ainda acreditamos que temos pleno e irrestrito direito ao conforto e a liberdade que o carro oferece. E uma mídia poderosa está aí para nos estimular. Mas, nos esquecemos de pensar no próximo. Não colocamos limites em nossas próprias vontades e desejos imediatos, nem pensamos no futuro e nas questões de sustentabilidade. Isto vai ter um custo, provavelmente alto. Colocamos a individualidade do carro em primeiro lugar. "É meu!". "Eu quero!". É a fábula da cigarra e da formiguinha em larga escala.
Ultrapassando os carros e ônibus parados, observando atrás dos vidros feições tristes, entediadas, anestesiadas, pude perceber como estamos encurralados. E para complementar, afirma o especialista em transportes, Eric Ferreira: "E só vai piorar".

 
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